Rodrigovk
Escritor, faz-tudo, editor e pai

Em cima do trator a cabeça voa

Será que é sustentável queimar tanto diesel para criar um espaço verde?

Desde que comecei a construir o Espaço Kabouter tenho pensado sobre tratores. Claro, passo um bom tempo em cima deles, roçando o mato, passando o subsolador ou arrancando na marra as touceiras de cana que perdi o controle e cresceram demais.

Enquanto isso, minha cabeça fica no “será que é sustentável queimar litros de diesel para arrastar um trator de duas toneladas nessa agrofloresta?”

Quando comecei a estruturar o projeto do espaço, joguei várias palavrinhas na tela até perceber que a maioria não me serviria. “Permacultura”, por exemplo, não vê tratores com bons olhos, principalmente porque você precisa de diesel, ou seja, você está trazendo muita energia de fora para o seu sistema, e a ideia da permacultura é manter a autonomia.

“Biodinâmica” é um termo ainda mais confuso. Em diversos aspectos é semelhante à permacultura, e pensa de modo mais complexo sobre o papel dos animais ali, mas traz também uma pá misticismo que não me apetece.

Já “orgânico” é mais tranquilo, até porque, para ser considerado orgânico, basta seguir um conjunto de regras. As principais dizem respeito à proibição de defensivos ou adubação química. Orgânico costuma ser mais saudável, mas é possível produzir em escala industrial, com maquinário pesado e sem real recuperação do solo ou do ambiente.

Então chegamos em “sustentável”, um termo guarda-chuva que abrange tudo isso aí em cima. Palavra chuchuzinha, fácil de entender, que já vem com a filosofia embutida… e meio que não significa nada. Termo favorito para greenwashing.

Eu lá pilotando meu trator… é sustentável?

A gente até poderia comparar a quantidade de CO2 gerada à que será absorvida pelas árvores. Mas e o impacto da extração do diesel? De tirar petróleo do subsolo da Arábia Saudita, enfiar em um navio, atravessar o Atlântico, refinar e levar até o posto de gasolina da minha cidade? Ou todo o aço necessário nessa máquina?

Por outro lado, como eu coloco na ponta do lápis a recuperação de um solo degradado por monoculturas, a restauração da vida biológica do solo, do alimento para centenas de pássaros, morcegos, insetos e humanos que estará disponível por aqui?

Trabalhar com sustentabilidade é tão complexo que me dá até raiva quando qualquer produto coloca um selinho verde por eliminar um único poluente da cadeia, ou usar só 75% do plástico da primeira versão, como se o problema não fosse todo o sistema logístico, ou o processo fabril, ou a própria e abusrda existência de água engarrafada.

Conversando sobre isso aqui e ali ouvi uma resposta interessante:

“A ferramenta só vai potencializar sua intenção. Se a sua intenção for plantar para recuperar o solo, a tendência é amplificar a sua intenção.”

Sim, existem falhas nessa linha de raciocínio, mas é um bom começo para desamarrar o nó. Porque, na maior parte do tempo, eu trabalho sozinho. Eu não tenho quinze primos, cada um com uma enxada, para capinar o mato e evitar que sufoque as árvores que plantei.

“Comece de onde você está” é outra frase repetida em MBA e Instagram de coach. Faz sentido. Mas pra isso eu preciso entender esse lugar onde estou: falta mão de obra e sobra ferramenta, pois consigo emprestar trator, roçadeira e outros implementos do meu pai, um privilégio que muita gente que está começando não tem.

Em última análise, minhas alternativas seriam fazer a agrofloresta com trator mesmo, ou não fazer (e deixar a monocultura de cana, que por si só já teria vários probleminhas).

A armadilha aqui é o fato de que ferramentas moldam o pensamento, mais do que o inverso. Se você só tem martelo tudo é prego. Quando você tem um trator, é mais difícil pensar em jeitos diferentes de fazer as coisas. (Mas com certeza eu não daria conta de cuidar de dois hectares, quando, mesmo com o ferramental, eu mal consigo gerenciar.)

Automação agrícola é uma coisa louca. Quem não é da área costuma pensar que a gente adapta as ferramentas para lidar com as plantas, quando geralmente é o contrário. Cria-se uma variedade de milho resistente ao glifosato, para que você possa pulverizar veneno sobre o campo todo matando “só as pragas daninhas” (e o resto do bioma).

Há algum tempo li uma matéria que contava como Portugal e Espanha estão trocando as antigas oliveiras por plantas mais adaptadas à mecanização, que toleram um plantio mais próximo, mas que destroem o solo. O resultado é um azeite mais barato, cujo custo, na verdade está uns tantos anos lá para frente.

Aliás, milho e cana para monocultura são plantas adaptadas ao menor espaçamento possível, o ganho de produtividade está na capacidade das plantas, cada vez mais próximas, conseguirem absorver luz solar. Só que o solo não dá conta de de alimentar um pé de milho a cada 20cm, então joga lá o nitrogênio produzido ali na Rússia. Com o passar do tempo, o solo se torna cada vez menos vivo e mais um substrato.

Só que a disponibilidade de nutrientes para as plantas depende, principalmente, da vida biológica do solo: fungos, bactérias e insetos que quebram cadeias químicas e estão sempre transformando substâncias em outras que as plantas conseguem absorver. E oh, puxa vida, essa cadeia não se dá bem em monoculturas.

Foi mal, esse texto virou aulinha de solo e sustentabilidade. É tempo tempo demais para pensar enquanto trabalho em cima de um trator tentando cuidar das cerca de mil mudas que plantei por aqui. Tem bastante goiaba, uma fruta que tentaram me convencer a nem tentar produzir orgânico, que é difícil demais. Mas goiaba atrai passarinho, e é nativa daqui, então…

Às vezes me pergunto se o mais sustentável seria não fazer nada. Não plantar, não colher, deixar que a natureza tome seu rumo, já que ela tende sempre ao equilíbrio.

O que é verdade, em certa escala de tempo. Mas não estou lidando com mata virgem ou vegetação nativa. (Bom, para alguns especialistas não existe na Terra um único espaço que não tenha sido alterado pelo homem). O terreno que trabalho já teve plantio de cana, milho, maracujá, laranja, abacate, já foi pasto para gado e sei lá mais o quê. Se existe uma ação humana para acelerar a degradação, não faz sentido uma ação humana que acelere a recuperação?

Até porque a humanidade não tem tanto tempo assim para esperar o clima se estabilizar sozinho.

E também, em última instância, eu busco uma versão de equilíbrio que seja sustentável financeiramente. Seja com árvores frutíferas, um bosque cenográfico, um espaço do qual eu consiga tirar meu sustento. Talvez a versão do equilíbrio “deixar solto” seria uma campina com meia dúzia de árvores típicas do cerrado.

Por fim, é aquela síndrome de super herói. Você não vai salvar o mundo sozinho. Você está aí preocupado com um tratorzinho de duas toneladas num terreninho de dois hectares, quando o problema são tratores de vinte toneladas cultivando soja em áreas de cem mil hectares cujo propósito é virar ração de gado e salgadinho barato.

O impacto de decisões individuais é ínfimo. Mas é o conjunto de indivíduos que é capaz de empurrar mudanças sistêmicas. Eu sei, eu pareço aquela criança na propaganda de pasta de dente gritando “vamos salvar o mundo das cáries”.

Mas é aquele negócio, pensar em sustentabilidade de modo sistêmico é cansativo, qualquer decisão besta é impossível. Então você começa a fazer alguma coisa, que é melhor do que não fazer nada.

E se para essa alguma coisa você precisa de um trator, paciência. O futuro dirá.

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