Existem dois tipos de cultura familiar: aquele onde perguntar não ofende, e onde ofende sim, é preciso ler o ambiente.
Esse não é um conceito meu, claro. A primeira vez que vi isso foi em um print do Reddit que circulou a internet, em inglês chamam de “ask culture” e “guess culture”. Seria a cultura de “perguntar” e “adivinhar”.
A cultura de perguntar é aquela do “o não você já tem”. Você pode ser direto, pode perguntar à vontade, e a pessoa tem toda a liberdade de responder que sim ou que não. Já para a cultura de adivinhar, é constrangedor ter que dizer “não” , então nunca se coloca o outro nessa situação. Só vai perguntar quando o sim já é certeza, é aquela pergunta só para formalizar. Você precisa adivinhar o que vai acontecer.
Venho de uma cultura muito forte de perguntar. Escutei a vida inteira, inúmeras vezes, a frase “o não você já tem”. “Vai lá, pergunta, tenta”. Provavelmente porque meu pai é filho de holandeses. Nunca estive na Holanda, mas sempre ouvi que a cultura lá é muito forte nesse sentido, as pessoas simplesmente falam o que estão pensando.
Tenho algumas anedotas de família, como um tio que foi visitar um amigo na Holanda, ligou para ele e disse, “vamos se encontrar, estou vindo do Brasil, só vou ficar dois dias”. A resposta foi “não posso, hoje vou jogar tênis e amanhã vou encontrar com minha irmã”, algo bem seco e direto.
Minha mãe é brasileira. E me pergunto como é a cultura brasileira nesse sentido. Conversando com minha esposa, levantamos o fato de que o brasileiro nunca diz não.
É sempre aquele “ah, não vai dar, não vou conseguir ir, “não, eu vou sim” (e não aparece), é o tal do “sabe o que é?” Brasileiro é aquele do “passa lá em casa” (sem dar o endereço), ou “olha que eu vou” (uma ameaça).
Minha família é do sul de Minas. Não sei se todo mineiro é assim, mas minha família é o exemplo do mineiro sem cerimônia. Às vezes tenho a impressão de que eu poderia entrar na casa da minha vó e encontrar o Papa sentado na mesa da cozinha tomando café e comendo bolo de fubá. E quando não se tem cerimônia, você nem precisa dizer que sim ou que não, só contorna o assunto.
E virei essa mistura do “pergunte” holandês, com essa falta de cerimônia brasileira. O resultado é que vivo deixando minha esposa morrendo de vergonha por eu não ter medo de pedir as coisas que eu quero.
Então empresto o carro do meu pai à vontade, para ir a São Paulo, ou Campinas, não necessariamente só quando eu preciso. Ou ligo para o meu irmão, para a minha família e digo “estou indo almoçar aí com as crianças, tudo bem?” Minha esposa diz “Rodrigo, você não pode simplesmente ligar para as pessoas e se convidar para almoçar na casa delas, é feio!”
Só que isso não entra na minha cabeça. Se eu quero almoçar na casa das pessoas, por que eu não posso me convidar? Esposa me acha o ser humano mais folgado do mundo.
Mas a cultura de adivinhar também tem suas vantagens. Quem cresce assim é muito mais treinado em ler o ambiente. E às vezes fazendo isso você consegue as coisas de maneiras muito mais sutis e interessantes.
É claro que podemos pensar nisso como um espectro. Alguém muito para o lado de “adivinhar” se tornará uma pessoa passiva, incapaz de pedir o que quer, enquanto uma pessoa que seja muito para o lado de “pedir”, se torna aquela anedota holandesa, ou a criança que pergunta para o tio, “quando você morrer eu posso ficar com seu videogame?”
Só que o equilíbrio não está no meio do caminho entre os dois extremos. O ideal é conseguir caminhar por esse espectro e saber quando é melhor ler o ambiente e ir pelas entrelinhas e quando é melhor pedir com todas as letras.
A música de hoje chama-se “Inappropriate Behaviour”, do Sons of the East.
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