Tico-tico, anu, bem-te-vi, carcará, tiziu, maritaca, canário, marreco. “E ali em cima um joão de barro”, meu pai apontava quando eu era criança.
No interior as pessoas simplesmente sabiam esse tipo de coisa, aprendiam com o tempo. Assim como quando se cresce em centros urbanos se sabe qual ônibus vai para onde. (Quando comecei a pegar ônibus “na cidade”, meu maior medo era entrar na linha errada. Aconteceu algumas vezes. Sobrevivi.)
E agora, pleno 2020, olho para esse passado idílico com lentes cor de rosa. “O Brasil é o país do futuro“, cantava Renato Russo. Faltou malícia para escutar a parte “quando querem transformar estupidez em recompensa/ esperança em maldição“.
Mas, Rodrigo, espera, qual o foco? Este é um aglomerado de pensamentos mais ou menos coerentes sobre o mundo que encontramos, passarinhos e uma piada de médico. Vamos começar pela última.
Você conhece a piada do médico e do mecânico?
Chega o doutor para buscar sua Harley Davidson no mecânico.
“Conseguiu achar o problema?”
“Ô, chefia, como nova!”
“Perfeito!”
“Sabe, dotô, eu devia ganhar tanto quanto você. Uma máquina dessas é um sistema delicado, complexo, não é pra qualquer um não. Eu conserto a moto igualzinho o senhô faz uma operação.”
“Concordo perfeitamente. Agora tente com o motor ligado.”
A gente tem que consertar o mundo com o motor ligado.
É tudo mais difícil quando a gente tem o governo jogando contra. Num dia a Amazônia está em chamas, no outro perdemos parte do Pantanal. Ataques a religiões de matriz africana, preconceito, lgbtq+fobia, governo distribuindo “livros com histórias infantis edificantes” e não tem como acompanhar jornal sem crise de ansiedade.
A gente tem que concertar o mundo com o motor ligado.
O “c” aqui é intencional. Criar um concerto de vozes dissonantes, trazer a pluralidade, propor novos futuros, fazer boa arte.
Mas como criar, se estamos cansados e precisando de um abraço?
Outro dia li que um dos truques da rede social é fazer você se sentir no meio do palco, onde todos estão esperando para ouvir seu comentário sobre seja lá o que estiver à tona no momento.
Eu me pergunto se esse é uma das chaves para entender a nossa exaustão. Claro, nossos tapetes foram puxados, somos a geração burnout, sem poder de compra e endividada sem garantias. “E o futuro não é mais como era antigamente“. Só que o futuro nunca foi garantido. O mundo sempre esteve um caos, se você abaixar um pouco o nariz. E pandemia não é realmente uma novidade.
Então volto às redes que nos colocam no centro do mundo, dando a impressão de que nós podemos fazer alguma coisa. Arrume tudo ou seja cancelado.
Na verdade ninguém dá a mínima. Qual o nosso real poder de influência? Desapareça das redes, e se alguém perceber que você sumiu, tem sorte. É como aquela ansiedade adolescente, você acha que todo mundo sabe que você está com uma meia de cada cor, quando bem poderia ter ido de pijama.
Ninguém nunca deu a mínima para a quantidade de passarinhos que meu pai sabia nomear.
Já tentou cortar uma árvore que insiste em não morrer? É até divertido, você derruba a árvore e deixa o toco. Não dá um ano esse toco está cheio de galhos, e se esperar mais um pouco de repente tem outra árvore ali. Meio torta, é verdade, mas viva.
Muitas árvores da nossa floresta estão sendo cortadas, podadas, ou infestadas de insetos. Capitalismo, globalização, logística just-in-time, combustíveis fósseis. Talvez muitas dessas já estivessem condenadas e estão caindo com um vento um pouco mais forte. Talvez essas não sejam árvores realmente prolíficas, talvez elas mais tirem do solo do que devolvem e a natureza decidiu dar seu jeito.
“Não se esqueçam: coisa morta é, ainda, o melhor tipo de adubo que existe.“
Em “Coisa Morta“, de Jana Bianchi,
Eu acho que é hora de plantar árvores, espalhar sementes. Metáfora, sim, mas também literalmente.
Clima colapsando. 250 milhões de pessoas podem passar fome. Vai faltar tudo, só não vai faltar dinheiro para a Amazon.
A gente tem que consertar o mundo com o motor ligado.
A tarefa adiante parece enorme. Mas é bizarro, em tempos sociais, parece que precisamos resolver tudo sozinho. Da coleção de livros dogmáticos do governo à falta d’água em São Paulo. (Isso enquanto todas as nossas camisetas estão dobradas à vista na gaveta, organizada na escala cromática para ficar bonito no Instagram).
Mas somos oito bilhões de seres humanos no planeta. Se cada um plantar uma mísera árvore, são 8 bilhões de árvores. Plante duas, três, cinco. 40 bilhões de mangueiras, abacateiros, araucárias, cerejeiras, ipês, e por aí vai. Quanto mais árvores, mais passarinho. Mais passarinho, mais árvore.
A gente não tem que consertar com o motor ligado, porque não é um motor.
É bioma, é coisa viva, você dá um passo, seus parceiros não-humanos dão outro. Você planta uma árvore, em 50 anos tem vinte, cem. Muito tempo? Talvez, mas a gente não estragou o mundo em dez anos. Cortar uma árvore é rápido, crescer demora.
Outro dia conversava com a Fernanda Castro sobre passarinhos, ela havia postado uma foto de um Anu branco, e este é um bicho que tem aos montes aqui, eu estava há meses tentando descobrir o nome. E assim, mais um nome para meu repertório. Até mandei uma foto para agradecê-la.
Enquanto meu pai me apontava passarinhos, o Brasil atravessava uma inflação de 2780% ao ano. Sobrevivemos.
E minha cabecinha se perguntava como é que ele sabia tudo aquilo? Sobre a melhor época de plantar milho, como polinizar maracujá, como furar uma parede, como fazer concreto, que tipo de doença afeta a batata (e claro, como controlar tudo isso em planilhas do excel com milhares de linhas e fórmulas, senão não seria meu pai).
Outro dia estava com minha filha, ali no jardim, quando um passarinho de peito amarelo foi comer o resto de pera que deixamos para os passarinhos numa bandeja, junto com quirela e sementes de girassol. “Olha lá o bem-te-vi!”, apontei.
Caiu a ficha. Não dá para consertar o mundo todo. Mas alguma coisa a gente consegue fazer. Um passarinho de cada vez.