Estava dobrando camisetas quando o portal abriu,
bem ao lado de uma enorme
pilha de roupa suja.
“É uma grande honra, vossa majestade!”
Disse a raposa esquisita.
Ou talvez esquilo?
Parecia um dos desenhos que minha filha assistia.
“Teu retorno foi previsto nas lendas, é hora de conquistar o que é teu por direito!”
Terminei de dobrar as calças em silêncio.
“Majestade?” perguntou a criatura.
Chegou sem aviso, vai esperar.
Enquanto isso, pode juntar as meias em pares, isso adianta um bocado.
Contou-me então sobre o reino, onde dragões de fogo e gelo garantiam o longo domínio do terrível mago.
A blusa branca da menina tinha uma mancha.
Molho de tomate.
Bem no meio da barriga.
Falei pra ela não comer macarrão com aquela.
Mais uma que não dava mais pra mandar à escola.
Finalmente, café, porque mamãe me ensinou a servir as visitas.
E eu não ia desperdiçar a oportunidade de outro café no meio da tarde.
Agora me conta direito essa história de majestade.
“Tua mãe fugiu para este mundo para que tu vivesses.
O sangue real de tuas veias tem poder.
Tua vinda foi prevista pelos sábios
Para sobrepujar o destruidor de sonhos.”
A ladainha foi longa.
Fizeram até uma música com todos os detalhes.
Não era uma boa música.
Mamãe era filha de italianos, não de unicórnios.
E a única pessoa que conheço que fala tanto “tu” é a Andressa, mas porque é gaúcha.
Como sabia que era eu?
Que não tinha escolhido o apartamento errado?
A raposa citou uma cicatriz forjada a ferro:
O dragão na perna direita.
Queimei no escapamento da moto anos atrás.
Cobri com uma tatuagem, como todo mundo.
Em quantos a carapuça não serviria?
Perguntei quanto pagava.
Perguntei de novo em ouro ou pedrinhas brilhantes.
E de quinhentas formas diferentes até ficar bem claro.
Não pagava.
“Mas com a tua ajuda em poucos anos conseguiremos…”
Anos.
Se ao menos seis anos antes.
Não dá mais.
Tem as crianças.
A raposa protestou, mas eu só ouvia minha raiva:
Você tem ideia do que está me pedindo? Sabe o que é ter filho, por acaso?
Teve dois. Assassinados.
Pedi desculpas.
A raposa desapareceu.
Quando voltou na noite seguinte, eu fechava o dia com um reality show de sopradores de vidro na Netflix.
“Não vim te convencer”, respondeu ao meu olhar cansado.
Ficamos em silêncio olhando o fogo queimar nos fornos da televisão.
“É difícil viver sob trevas.”
Queria dizer que entendia, mas não conseguiria explicar política brasileira àquela hora.
Além do mais
Estava em casa vendo TV, enquanto minhas crianças dormiam no quarto ao lado.
O que eu entendia de trevas?
Queria entregar uma AK-47 pra raposa levar de volta.
Mas não tinha armas em casa.
Quem mandou ser pacifista?
“Tu eras nossa esperança.”
Mordi a língua para segurar o palavrão, mas a lágrima
Fugidia
Como ousa entrar na minha casa e dizer
Que eu poderia ser alguém?
Sonhar?
Quando tudo o que eu mais queria era
Fugir?
No terceiro dia já mandei esfregar a calça da menina que sempre voltava encardida da escola.
“Vim aprender. Deves ter algo a ensinar.”
Eu.
Que não conseguia ensinar uma criança a parar de cuspir pão mastigado no chão.
Teria altas dicas para fazer o bolo crescer.
Pentear cabelo embaraçado.
Furar uma parede sem sujar a casa inteira.
Mas a gaveta de como derrubar regimes autoritários estava vazia.
Precisava dessa também.
Hora de ir. O portal estava fechando.
Uma parte de mim queria se jogar naquele buraco brilhante na parede da área de serviço.
A outra sabia.
Partir quebraria o coração das crianças.
O meu já estava rachado, o que seria mais uma lasca?
Volte em 60 anos.
A raposa prometeu tentar.
“Portais são difíceis”
Como quem explica pra criança que vai tentar colar o brinquedo destruído.
Queria contar essa história
Entre risadas e taças de vinho.
De quando uma raposa de outra dimensão me ajudou a dobrar meias.
Mas dói.
Porque tudo o que eu queria era salvar um reino distante.
Um lugar sem brinquedos espalhados pela sala.
Onde jantares não terminam com metade da comida no chão.
Onde gritos são de heroísmo.
Onde enfrentaria o grande vilão.
Em vez de lutar com todas as minhas forças
Para não me tornar um destruidor de sonhos.