Sempre fui de celebrar as vitórias alheias. Editei a Trasgo por tanto tempo que consegui publicar o primeiro conto de muita gente que veio a lançar livros por grandes editoras, obras incríveis. Dá aquele orgulho, sabe?, de “eu sabia que você era foda antes de todo mundo”.
Porém, um sentimento agridoce tem vindo com o sucesso alheio. Ainda que eu esteja feliz pra caralho com as publicações e vitórias do pessoal agigantando o nosso querido Fantasismo, que já está tão grande que mal cabe num termo só… Ainda… que a alegria venha tingida de roxo, com o sentimento de não ser bom o bastante para “chegar lá”. Que se fosse já teria “dado certo”, seja lá o que isso significa.
É um sentimento que não tem nada a ver com literatura ou minha capacidade, mas um reflexo de águas mais turvas aqui dentro. Aprendi a duras penas a não enterrar os sentimentos, mas procurar deixar vir, investigar, aos poucos desamarrar o nó.
No meu caso:
Tem a ver com a sensação de estar “perdendo o bonde”, as pessoas foram fazer carreira enquanto eu decidi ter filhos e viver na roça.
É sobre ver tempo passar. Comecei um romance quando esposa estava grávida, terminei três ou anos depois. Minha filha já tem seis anos. Comecei vários projetos de livros e contos infantis, pensando nas crianças, que logo nem terão mais idade para o que eu quero escrever/publicar.
É sobre fazer coisas demais, porque eu não sei viver de outro jeito. Hoje mesmo já consertei a janela do banheiro, que não estava fechando direito, em vez de sentar e escrever essa newsletter, que era a primeira tarefa do dia. Escrevo isso ao meio dia, liguei o computador às sete. Yann Tiersen está tocando no Spotify aqui para ver se o foco melhora.
Três meses atrás, decidi parar de escrever literatura.
Escrever toma tempo, e esse tempo não é remunerado. Escrever é um hobby? Ok, eu sei que dá para ganhar dinheiro com a escrita, mas dinheiro mesmo, viver disso e pagar o plano de saúde das crianças, é difícil. Viver da arte sempre foi para poucos.
Talvez hoje a gente pense que é fácil por causa da Internet.
O youtuber ganha seis dígitos, a Instagramer vive viajando para hotel de luxo. São só os ganhadores selecionados para passear pela feira com o grande prêmio da barraca e convidar mais otários para o jogo adulterado. Tik Tok tem funcionários especializados em empurrar a visibilidade de determinados criadores, uma fábrica de hits para manter o interesse.
Parei de escrever por ter me enfiado num buraco do qual não conseguia sair. O último romance que escrevi não estava bom. Claro que eu sabia disso. mas talvez, naquela expectativa infantil, eu esperava que os leitores betas dissessem que estava ótimo, pode mandar para a editora. A resposta veio delicada, mas real.
O que não contei é que para escrever aquele romance roubei certo tempo do trabalho. Deixei de produzir para clientes que pagam para escrever o romance sobre Tijucaçú, o Deus Sapo Gigante do Brejo. Se meu ritmo para literatura é cerca de mil palavras por hora e o romance tem 42 mil palavras, coloca aí 42 horas de trabalho não remunerado, metade do salário de um mês perdido.
Ser pai me coloca numa posição estranha, porque, se por um lado, eu não consigo (e não quero) roubar meu tempo com eles para escrever, por outro me sinto irresponsável de não estar provendo como deveria, desculpa filha, não vai dar pra fazer sua festa de aniversário em buffet, vai ser em casa mesmo.
(Você não sabe como parte um coração / Ver seu filhinho chorando querendo ter um avião / Você não sabe como é frustrante / Ver sua filhinha chorando por um colar de diamantes / Cê não sabe como eu fico chateado / Ver meu cachorro babando por um carro importado.)
E sim, eu sei a ironia de escrever sobre falta de grana nessa newsletter, do alto do meu privilégio de classe.
E esse é outro nó. Não acho que minha história valha a pena ser contada. A gente não precisa de mais livros escritos por homens hétero brancos classe média do sudeste.
Então, escrever pra quê?
Escrevo porque preciso escrever. Porque minha cabeça fervilha de ideias, sensações, memórias, impressões que me assombram, e que eu só consigo lidar colocando no papel. Em outras palavras, para me comunicar. Para cultivar relações, para ser um humano em comunidade com outros seres humanos. Para mim, ficar sem escrever é me isolar.
Volta e meia me frustrava pelo fato do meu terapeuta não ler o que eu escrevia. “Caramba, está tudo aí desenhado muito melhor do que consigo explicar pra você falando aqui.” Talvez a gente escreva sobre nossos probleminhas para que outras pessoas que também têm probleminhas não se sintam sozinhas no mundo.
Tijucaçú não me deixou em paz. Porque escrever… também é não escrever. Deixar fermentar, é ficar matutando sobre por que tal personagem está fraca, sobre o que está faltando, sobre como algumas decisões da protagonista não fazem sentido, até que de repente você sabe o que precisa fazer para arrumar tudo isso. Só preciso de coragem e mais 42 horas para reescrever tudo.
Aí, pra vocês verem como é o universo. Enquanto eu já tinha esquematizado toda uma newsletter depressiva sobre como escrever é foda, ele me joga isso aqui:
O André, editor da Plutão, anunciou meu livro! Sim, eu sabia que estava previsto para sair, eu assinei o contrato, eu vi a capa. Mas eu ainda não estava muito crente.
Porque a Plutão é a terceira editora que promete publicar este livro, e o contrato foi assinado já faz uns anos, tivemos que renová-lo duas vezes. “Tom” foi escrito há mais de dez anos, reescrito três ou quatro vezes. Este é um mercado lento, e mesmo quando coisas acontecem, ainda são em ritmo próprio.
Ainda vou falar mais a respeito, mas quero adiantar, que tem a ver com essa newsletter, é que “Tom” é um livro que eu precisei escrever. Tom é um menino que quer tanto ser um robô sem sentimentos, que seu corpo vai se tornando de lata. Minha forma de processar um mundo que não admite meninos emotivos. Lembra o que eu disse sobre ter que aprender a não enterrar sentimentos?
Assim que tivermos uma data de lançamento e mais detalhes, venho aqui contar para vocês.
Tenho pensado muito sobre o ato de escrever, sobre essa troca. Nunca fui tanto de redes sociais porque o meu lance é esse texto longo aqui, talvez meu ego não caiba numa foto do Instagram (há!). E é sempre quando desisto de escrever que eu percebo como sinto falta. E volto ao teclado.