Rodrigovk
Escritor, faz-tudo, editor e pai

O limbo no meio

Quando era adolescente, resolvi deixar o cabelo crescer. Mas entre querer um cabelo comprido e finalmente consegui-lo, levei alguns anos. Não porque o meu cabelo cresce particularmente devagar (esposa acha até que cresce rápido demais e eu deveria ir ao barbeiro mais do que duas vezes no ano), mas porque um cabelo nem comprido nem curto, é horrível. Para eu conseguir ter um cabelo estiloso (ha-ha), eu tive que aceitar passar alguns meses com um poodle na cabeça.

O meio do caminho é sempre difícil. No começo há empolgação, o impulso, a vontade de fazer acontecer e atropelar o que for necessário. E no fim, bom, final é sprint e recompensa.

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho

A pedra separa amadores e profissionais. Literalmente. Estávamos conversando no grupo de newsletters sobre a melhor hora de monetizar uma newsletter, quando passa a ser aceitável começar a pedir dinheiro por esse texto que chega (toda semana? Todo mês? Quando dá?) na sua caixa de mensagens.

Não existe uma resposta certa, existe o que funciona para cada um, base de assinantes, há quanto tempo escreve, e até um bom punhado de sorte. Mas é um meio do caminho, né? Não é mais aquela vibe inicial de fazer isso por paixão, de jogar uma garrafa ao mar com uma carta dentro pra ver se chega a alguma praia.

E também não é aquela colunista que o mundo e meio que já sabe o nome de tanto que é citada, linkada e convidada para falar em podcasts, e canais no Youtube, e eventos, que vive disso e que todo mundo sonha em ser como ela, já virou influencer, ganha brusinha de graça e tem um séquito de fãs esperando todo domingo (ou quinta? ou segunda?) para ouvir suas palavras de ordem. (Que, na real, às vezes só parece estar bem, mas tem uma vida mais estressante que emprego tradicional).

Eu sei, “mas eu já faço de graça por paixão, o que tem ganhar alguns assinantes para me ajudar a levar isso para a próxima prateleira?”

Pode funcionar pra você. Funciona pra muita gente. Pra mim, por mais que eu não queria ser assim, dinheiro muda o jogo. Como diziam alguns ditados circa web 2008:

  • Você acha que o seu texto vale pelo menos um real? Se não, pra que escrever?
  • Existe um abismo de diferença entre oferecer algo de graça e cobrar um centavo por ele.
  • Cobre direito ou faça de graça. Cobrar barato é se desvalorizar.

Eu já estive no meio do caminho várias vezes (acho que eu nunca saí do lamaçal).

Quando fundei a Trasgo, fizemos quatro edições de graça, e aos poucos, fomos encontrando nossos espaços e leitores, com duzentos, trezentos downloads por edição. No segundo ano, tentamos cobrar cinco reais por edição, e tivemos a incrível marca de SETE unidades vendidas. No fim, fomos encontrando um caminho via apoio coletivo e até que chegamos a tirar pouco mais de mil reais por edição, que nos permitia pagar mais de 200 para cada autora e artista envolvida (mas longe de bancar um salário para o seu editor, que teve que uma hora teve que fechar a revista para focar em um trabalho de verdade que pagasse as contas).

Algum tempo depois, passei a escrever com mais frequência. Blog, newsletter, podcast, rede social. Sempre com a mensagem “gosta do conteúdo? Colabore assinando e tralalá tralalá”. Cheguei no que considero um dos piores cenários: apenas cinco assinantes por alguns meses.

Quando você não tem ninguém pagando, você tem uma motivação interna, um chamado. E zero responsabilidade. A partir do momento em que o dinheiro entra na jogada, existe um cliente, existe uma expectativa, eu não posso decepcionar as poucas pessoas que confiam no meu trabalho, se não com um bom texto, pelo menos com a frequência. Eu sempre penso que ter assinantes não deveria mudar minha relação com texto, mas, no meu caso, muda. Talvez o problema seja eu, sei lá.

Então, com poucos assinantes você tem a responsabilidade pela entrega, mas não tem dinheiro suficiente para abrir mão de qualquer um dos freelas para poder se dedicar a isso, e empurra o quanto consegue, no mês que vem vai vir mais gente, mês que vem, até que o mundo te atropela.

Ou talvez esse seja só um reflexo da minha relação esquisita com o dinheiro, com a sensação de que eu não deveria pedir ou aceitar o dinheiro dos outros, por uma série de privilégios que carrego por ser quem sou, e acabo nessa sinuca onde não consigo transformar isso aqui que estou fazendo em trabalho de verdade, mas, ao mesmo tempo, é algo que faço há tanto tempo (escrevo na Internet, de uma forma ou de outra, há 22 anos), que é ridículo continuar aqui, como aquela banda de uns caras de 40 anos que continuam fazendo show de graça porque um dia eles serão descobertos. A banda de um homem só. (Toca o trombone triste – Fom fom foooom).

Esse texto começou como uma resposta a uma conversa no grupo de newsletters para a pergunta “qual a melhor hora de começar a aceitar dinheiro do Substack”, mas essa conversa foi meses atrás, e não escrevi nada porque eu não sabia ao certo o que eu penso sobre isso.

O complicado é que dinheiro é só uma ideia criada pela humanidade para facilitar trocas comerciais, e de repente virou a régua pela qual medimos o nosso valor, nosso sucesso ou direito de pertencer a certos mundos. E o que era para ser uma conversa simples sobre trocas financeiras acaba se tornando um monstro devorador de almas. (É, eu não sei mesmo falar sobre dinheiro).

O lance é que não acho que toda troca precisa ser intermediada por moeda. Isso aqui que estamos fazendo, é arte, é comunicação, é magia. Tenho pensado muito nisso, em como “desmonetizar a vida”, nessa época em que qualquer hobby ou habilidade tem que ser sempre empregada em prol do Capital.

Mas eu também penso que artistas e escritores precisam ser pagos, precisam ter dinheiro para viver decentemente e com conforto, e foda-se o estereótipo do artista faminto, e que toda categoria onde existe amor na profissão acaba sendo abusada pelo poder econômico. (Artista? Escritor? Professora? Enfermeira? Você devia fazer por amor, não por dinheiro! 🤬)

Também acho que não faz muito sentido isso que a gente acaba fazendo, de fazer o dinheiro circular aqui embaixo, artistas e escritores se apoiando, assinando a newsletter um dos outros, porque a gente já não costuma ter dinheiro sobrando, e acaba tirando do próprio bolso para apoiar os amigos.

João assinava a newsletter de Teresa que assinava a newsletter de Raimundo
que assinava a newsletter de Maria que assinava a newsletter de Joaquim que assinava a newsletter de Lili
que não assinava ninguém.

E quem ri é a empresa do cartão de crédito que está tirando 10% de cada transação. Ou a “editora” que acha um absurdo ter que pagar os escritores de seu catálogo, estou PUBLICANDO o seu livro, você deveria me agradecer!

O dinheiro deveria vir de outro lugar (mecenato, cadê?), mas como furar a bolha? Como chegar no público mesmo? O jogo é adulterado? A gente sabe que redes sociais tendem a funcionar no modelo “vencedor leva tudo”, com o viés do vencedor ligado no máximo. (A gente acaba muito mais exposto àqueles poucos com público gigante e não se dá conta dos milhões quase sem seguidores).

Eu me pergunto se esse momento cultural aqui é um meio do caminho. Aquele momento em que o cabelo tá feio e não ajeita de modo algum, mas se crescer um pouco vai ficar bonito. Uma geração pós internet e pré IA (assumindo que as IAs que existem hoje são apenas brinquedos e que daqui a dez, vinte ou trinta anos seria, capazes de revoluções verdadeiras na medicina, assistentes pessoais, finanças, enfim).

Talvez não, a figura do artista faminto existe há centenas de anos. Por outro lado, capitalismo é coisa recente, monopólios globais então, coisa de quarenta anos só. Sabe, minha utopia seria robôs fazendo o trabalho chato e renda básica universal pra cada um. Quem tem sangue nos zóio vai trabalhar mais, quem só quer fazer arte e magia e pisar na grama ainda vai conseguir viver bem.

Eu não estou dizendo “você não deveria abrir um Patreon, ou um tier pago no Substack, ou um Catarse Assinaturas”, ou o que você quiser fazer. Acho que cada um tem que tentar dirigir o carro que tem na garagem. Ou a bicicleta. Ou ir a pé mesmo.

Esse texto é só o meu cérebro superativo pensando muito mais do que deveria sobre a “vida econômica do artista”.

Talvez eu esteja no palco a tempo demais, escrevendo aqui na Internet desde quando isso tudo era mato e o Twitter, em vez de promover discurso de ódio, baleiava. E talvez aqueles caras de 40 anos em cima do palco fazendo show de graça não estejam com a expectativa de um dia explodirem, mas só fazendo um som porque é isso que eles curtem fazer. E com esse solo de trombone me despeço. Fom foromfomfom….

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