Esta vai ser uma newsletter meio nerd, onde falo de conceitos como “interoperabilidade”, com o qual encho o saco das pessoas obrigadas a conviver comigo. Uma newsletter sobre essa coisa de vivermos online usando ferramentas que não entendemos enxergando luzinhas em telas como se fossem coisas de verdade.
Começarei contando por que abandonei o Notion apesar de adorar aquele software.
Para os não iniciados, Notion é uma ferramenta online para organização de informações. É como se fosse um cadernão digital, com páginas nas quais você anota tudo o que precisa — em texto, imagens, tabelas, banco de dados — e o aplicativo te ajuda a organizar tudo isso. Imagine que você está abrindo um negócio e andando para lá e para cá com uma pasta embaixo do braço, com fotos de concorrentes, pesquisa de preços, ideias de produtos, anotações, contatos de fornecedores, enfim. É isso, só que digital.
Amo o jeito que o Notion funciona, principalmente porque muita coisa ali é, embaixo do capô, texto com links, e para quem tem uma cabeça movida à escrita, isso ajuda demais a concatenar as ideias.
Desde que conheci o site no começo do ano passado passei a organizar a vida ali. Receitas, metas, planos, projetos, textos, pautas para essa newsletter, posts, contatos, enfim. Estava funcionando tudo bonitinho, direitinho. (Pelo menos no pc, na carroça do meu celular era lerdo. M.u.i.t.o l.e.r.d.o).
Mas essa não é a história de como convenço você a fazer inscrição para o Notion, mas por que saí. O motivo é simples, até pequeno: porque um pequeno engasgo técnico me deixou com o ci na mão.
Esposa abrindo negócio novo, e como todo bom evangelizador, tentei criar uma conta para ela organizar ideias e clientes ali no Notion. Só que… o e-mail com o link para criar a senha nunca chegou. Tentei em dias diferentes, e-mails diferentes, mas eu simplesmente não conseguia criar a conta. O e-mail não chegava. Uma pesquisa rápida no finado Twitter me revelou mais gente com o mesmo problema.
O maior medo em serviços online não é a perda de dados. Toda empresa que lida com dados de clientes tem backup robusto. O medo é ser trancado para fora. Imagine se um dia, por qualquer motivo ou atualização de segurança, eu precisasse validar novamente o login clicando em um link num e-mail… que nunca chega? Imagine perder o acesso a meses de dados, textos, planilhas e informações que eu sistematicamente estava criando ali no Notion?
Claro, esse problema só faz sentido como usuário gratuito do serviço. Pagantes geralmente conseguem reaver esse acesso com o suporte técnico via telefone ou outros canais. Se o Notion custasse seus R$10,00 por mês eu provavelmente seria um feliz pagante do serviço. Só que, na conversão do dólar, 50 mangos por mês fica salgado.
Uma possível solução seria fazer backups constantes do serviço. Mas a interoperabilidade do Notion é bem ruim… Por mais que sim, ele exporte tudo em markdown e csv (dois formatos fáceis de importar em outros sistemas), os links e interconexões que fazem do serviço algo tão valioso se perdem. E as planilhas ficam confusas e pouco legíveis sem a máscara que o software aplica. E os nomes dos arquivos exportados contém uma sequência de dígitos únicos que deixa tudo poluído, e, às vezes, passa o limite de caracteres do Windows tornando a pasta inacessível sem renomeá-la.
A palavrinha mágica aí no meio é interoperabilidade: a capacidade de um software ser utilizado em concomitância com outros. Um arquivo de texto você pode abrir no Word, LibreOffice, Google Documentos, importar para o Affinity, para o Indesign, enfim! Um arquivo .docx e os softwares que trabalham com esse arquivo, têm uma ótima interoperabilidade.
Já sistemas online geralmente trabalham com bancos de dados internos que agilizam o servidor e fazem tudo funcionar mais rápido, mas que dificilmente se integram a outros sistemas, salvo por APIs proprietárias que não costumam dar acesso a todo o conteúdo (por motivos de segurança, até).
Dane-se que o aplicativo de calculadora, que uso todos os dias, não se integre com mais nada. Mas se estou criando um cadernão para salvar anotações sobre meus escritos, pautas, contatos, projetos, incomoda ficar amarrado a um único software.
Principalmente porque softwares são atualizados constantemente, e podem ir para uma direção que não me agrada, ou — como muitas vezes acontece — serem comprados por grandes corporações, e aquela ferramenta maneira que você costumava usar passa ser uma “parte meio truncada de um grande sistema”, tornando-se cada vez menos utilizável.
Sai Notion, entra Obsidian
O Obsidian não é uma alternativa direta ao Notion, mas uma ferramenta para organizar ideias, dados e informações em arquivos de texto com a formatação em Markdown, com um sistema de links internos conhecido como “wikilinks”.
Em palavras mais simples, é um editor de texto puro (txt) com alguma formatação (negrito, título, bullets), e links internos entre notas. Por exemplo, se eu marcar a palavra [[carinho de rolimã]] desse jeito, ele vira um link para outra nota chamada “carrinho de rolimã”. Do lado esquerdo há um navegador de pastas e notas.
Como sou escritor e me organizo principalmente por texto, a substituição funciona bem por aqui. Os dados tabulados complexos voltaram para o Libreoffice Calc (alternativa em código aberto ao Excel), que também consigo linkar a partir do obsidian (embora sinta falta das planilhas lindinhas e ícones fofinhos do Notion).
No Obsidian, cada “pasta-mestre” chama-se “Vault”. Tenho uma para minha vida, uma para o Espaço Kabouter, uma exclusiva para receitas e uma para o livro do sapo gigante.
O Obsidian tem uma série de plugins que expandem suas funcionalidades. Um que uso no Vault de receitas me permite clicar nos ingredientes das receitas que quero fazer e gerar automaticamente a lista de compras. Outro permite que cada pasta tenha uma nota associada — uma página de indexação —, o que torna a navegação bastante semelhante à do Notion.
Como tudo está em arquivos (principalmente de texto) organizados em pastas, todos os dados ficam offline aqui no HD.
Acho que estou ficando velho, chato e desconfiado da “Big Tech” e da nuvem, e pensando sobre como talvez temos sido relapsos com nossa cultura. Por exemplo, meu livro de receitas.
Minhas receitas ficavam, até mês passado, no Google Keep. Meus critérios para um bom livro de receitas:
- Ser fácil de ser acessado via celular
- Possibilidade de fazer backup
- Ser facilmente editável
O Keep atendia bem o primeiro e último ponto, mas não o segundo.
Modifico minhas receitas toda hora. Reduzo açúcar, troco ingredientes, e vou anotando tudo isso, e aos poucos as receitas vão ficando cada vez mais minhas. Tenho amigos que têm como livro de receitas uma coleção de links. Mas links não são editáveis! Links desaparecem o tempo todo! Como você vai lembrar daqui a dois meses que dobrar a quantidade de canela da receita ficou sensacional!?
Receita é cultura, texto é cultura, fotografia é cultura. E talvez a gente esteja jogando tudo nas redes sociais ou em bancos de dados online, um pântano onde só aparece o mais recente, brilhante, o resto afunda nas profundezas, muitas vezes inacessível, a ponto de perdemos completamente o contexto daquele produto cultural, tão rico quanto a obra em si.
Enfim, sei que o Keep não é exatamente uma rede social, mas também não é muito organizável. E dado o histórico do Google de acabar com tudo o que não gera lucros bilionários ou dados para anunciantes, acho surpreendente que ainda esteja no ar.
Migrei as receitas para o Obsidian, que mantém os arquivos de texto aqui no HD, de onde posso fazer backup, copiar e editar tudo isso bem fácil.
Se, de repente, o Obsidian parar de funcionar, ou alguma atualização torná-lo horrível, está tudo em arquivos de texto, posso usar qualquer programa para editar os arquivos. Inclusive costumo alternar escrever no Obsidian e no Notepad++, dependendo do fluxo de trabalho do dia.
Interoperabilidade é lindo.
Antes do Notion eu usava o Evernote para organizar a vida. Tinha várias notas e cadernos, com ideias para textos, anotações diversas, pensamentos, rascunhos, links e várias listas de tarefas. Em algum momento o Evernote passou a restringir a versão gratuita do programa, de modo que não atenderia mais minhas necessidades. Exportei todas as notas e passei um tempo trabalhando com arquivos em .txt e um esquema de pastas para organizar tudo, usando principalmente o Notepad++. Isso me atendia bem, mas sentia falta de algo que não sabia definir bem.
Então apareceu o Notion, todo bonitinho com tabelas! Links! Não cheguei a migrar as notas do Evernote para o Notion, foi mais um movimento de “arquiva tudo e começa de novo”, mas fui criando um novo banco de informações ali, contos e livros, onde e quando foram publicados e tudo o mais.
Tirando as tabelas (banco de dados), é possível replicar quase todas as funções do Notion no Obsidian. No começo até fiz isso, colocando links para as pastas, e organizando tudo. Mas percebi que eu não queria fazer isso, ao tornar o Obsidian igualzinho ao Notion, estaria amarrado a esse software. E cada ferramenta possibilita um modelo de organização diferente.
Acabei descobrindo que o que mais me fazia falta no esquema somente com arquivos de texto eram duas coisas: links entre as notas e indexadores automáticos com as listas de arquivos em cada pasta. A primeira é nativa do software, a segunda você resolve com um plugin no Obsidian.
E a nuvem? E o celular? Você faz backup de verdade?
Uma pergunta de cada vez. Desde que o HD da esposa pifou de repente levando tudo o que havia nele (muitas fotos nossas e das crianças pequenas, inclusive), tenho sido mais disciplinado quanto aos backups, copiando tudo o que presta para um HD externo todo começo de mês. Não uso nenhuma ferramenta específica, apenas rodo um script do robocopy que copia as pastas importantes.
O Vault principal também está em uma pasta dentro do OneDrive, o que funciona como uma garantia extra por conta da Microsoft.
Por fim, a solução para passar tudo para o celular é usar um aplicativo chamado SyncThing, que mantém as pastas em sincronia no celular e computador, inclusive lidando bem cm conflito de versão. Só não funciona perfeitamente porque preciso que ambos estejam ligados e em uso para que a sincronização funcione. Até estava usando um celular Android mais antigo como servidor de sincronização, que ficava ligado o tempo todo, mas desde que este queimou, ainda não substituí.
Moleskines digitais
Tenho amigos que são muito cuidadosos com moleskines, planners, cadernos. Invejo essa habilidade de conseguir organizar uma vida com canetas coloridas e guardar pilhas e pilhas de ideias em caixas de sapato embaixo da cama. Adoro rabiscar à mão, mas são rabiscos, garranchos, mapas mentais que não fazem sentido a ninguém senão a mim (e só por alguns meses, depois disso nem lembro mais o que eu queria dizer com aquelas setas).
Por isso minha relação com cadernos é de um item consumível. Rabisco e anoto do começo ao fim, depois jogo fora. Gosto assim, o caderno me dá mais liberdade para pensar “de maneira suja” já que vai pro lixo mesmo. Há vários anos ganhei um caderno lindo, capa de pano, que só está 1/3 preenchido, porque fico meio receoso de macular suas páginas tão bonitas com garranchos toscos que não servem à posteridade. Sempre acabo voltando para o Tilibra espiral com a capa feia de alguém surfando.
Mas escrevendo este artigo percebo como sou cuidadoso com meus “moleskines digitais”, a organização de pastas e arquivos digitais, cada um em seu lugar, textos publicados separados das ideias, indexadores, e até a formatação cuidadosa de títulos e intertítulos.
Meu Obsidian, ou melhor, esse punhado de arquivos em markdown interlinkados e cuidadosamente organizado em pastas que fazem sentido, é meu planner digital, arquivos de texto hierarquizados que só não são feitos com canetinhas coloridas porque gosto mesmo de um textão preto em fundo branco, ou vice-versa. Isso é cultura, também?
Bônus: um caderno de receitas caótico
Semana passada terminei de tirar as receitas do Keep e organizá-las aqui no Obsidian, e então me dei conta de que é muito, muito fácil publicar na internet um punhado de arquivos em markdown. Então fiz isso, um presentinho pra vocês:
Não é bonito, porque eu não me importo. A maioria das receitas não é minha. Algumas têm a fonte, outras não. Muitas têm alguma modificação minha. Algumas nunca fiz. Navegue por sua conta risco, como se fosse aquele caderno de receitas da sua tia, com anotações à mão, receitas copiadas às vezes com a quantidade errada, o fundo de uma embalagem de creme de leite colada com durex em alguma página, e “receitas” que não passam de uma lista de ingredientes, afinal, quem não sabe fazer um bolo?
📷 Foto de Julia Joppien / Unsplash