Rodrigovk
Escritor, faz-tudo, editor e pai

Manutenção: nossa velha obsessão em manter as coisas como estão

Manutenção: tenho mastigado essa palavrinha. Interrompi o andamento da obra do Espaço Kabouter para rebocar a viga que fizemos no ano passado, pois a armadura exposta começava a enferrujar e poderíamos perder todo o trabalho. Aproveitei para cobrir com uma generosa camada de tinta as peças de metal que farão a conexão entre concreto e madeira, para evitar que enferrujem.

Se depender da Natureza, nada fica como está.

A agrofloresta que plantei que o diga. As mudas estão agora com três metros de altura, mas o capim colonião e a cana-de açúcar que crescem junto não me dão sossego. É, trator, roçadeira e foice para dar conta de tanto mato e permitir que as árvores se desenvolvam. Foice que também perde o corte e precisa ser amolada.

Humanos e sua mania de tentar congelar o tempo.

A gente faz uma casa achando que vai durar para sempre. Ou, pelo menos, uns 100 anos. Haja manutenção. Minha tia teve que derrubar uma casa que foi de meu avô, aqui no sítio ao lado. Um veio d’água no subsolo foi, com o passar dos anos, corrompendo a fundação da casa até o ponto em que era mais barato construir outra do que consertar a rachadura gigante na parede. Um pequeno veio d’água, de gota em gota. Água mole, pedra dura.

Trabalhar com bioconstrução é uma coisa meio doida, porque, às vezes, a ideia não é fazer uma viga de concreto gigantesca que resista ao tempo, e sim uma parede leve com bambu e barro que vai ser refeita daqui a alguns anos. É aceitar que as coisas se desfazem e lidar com isso de algum modo.

Estava ouvindo um podcast sobre o paper chamado “The Silurian Hypothesis”, no qual Gavin A. Schmidt e Adam Frank, pesquisadores da NASA e da University of Rochester, investigam a seguinte premissa: “Os humanos são a primeira civilização tecnologicamente avançada a viver da Terra? Há como saber se houve outra há milhões de anos?” A resposta é mais complexa do que parece, pois qualquer vestígio da civilização humana já teria desaparecido depois de tanto tempo, não sobraria um único iPhone ou Viaduto Minhocão para contar a história.

Sou fascinado por ruínas. Amo explorar restos de paredes, antigas ou não, destruídas, tomadas pelo mato. É um gostoso tapa na cara da nossa necessidade de controle.

Existe essa dicotomia entre o mundo físico e o digital. Enquanto aqui, no mundo real, a gente precisa manter a Mona Lisa em uma sala com controle de umidade e temperatura atrás de um vidro balístico, no digital podemos fazer infinitas cópias perfeitas. O arquivo não degrada com o tempo.

Mas a nuvem não existe, é só um computador em algum outro lugar, talvez com HDs girando, bombas de resfriamento, um bando de fios alimentados por uma corrente elétrica contínua que faz toda a mágica acontecer. Servidores que, veja você, precisam de manutenção. Alguém precisa consertar o ar condicionado.

Acho incrível como conseguimos importar o pensamento até para espaços virtuais. Você precisa postar sempre no Instagram, ou desaparece, como se o perfil também enferrujasse. Um blog que não recebe atualizações seria uma ruína de uma antiga construção? Com spams e bots tentando crescer entre as frestas do WordPress?

Você pode pensar que espaços virtuais não viram ruínas, mas todo mundo que já teve um Flogão ou um Fotolog já viu uma construção erguida por anos, foto a foto, cair de uma vez.

Continuamos tentando. Mandar newsletter, postar no Instagram, cortar a grama semana sim, semana não, capinar o mato, pintar a parede, cobrir de cimento aquela parte que resolveu cair. Manutenção é também a própria essência de estar vivo. Ir na academia, romper algumas células musculares para que outras possam tomar o seu lugar e torná-las mais fortes. Comer salada, ou até hambúrguer, é fazer a manutenção desse corpo que nos carrega para lá e para cá, mantê-lo rodando o quanto podermos até que comece, inevitavelmente, a se desfazer. Ir no mercado comprar papel higiênico, lavar a louça, trocar o óleo do carro.

Manutenção é feito do mesmo material que essa coisa chamada vida.

Num tempo cósmico, todo esforço é inútil, não passamos de primatas com polegar opositor e telencéfalo altamente desenvolvido morando em um planetinha sem graça que um dia será devorado pela própria estrela. Mas na efemeridade da civilização, a gente não precisa durar pra sempre, só precisa cuidar do jardim por alguns anos até passar o bastão. “Ó, plantei essa helicônia, mas daquele canteiro ali não consegui tirar todo o mato, a couve já dá pra colher. Fiz o que deu.”

Beijo,

Rodrigovk


Um adendo:

Não foi minha intenção relacionar a natureza tomar de volta as construções e as tragédias no Rio Grande do Sul. Uma coisa é ver uma casa em um sítio ser tomada pelo mato, outra coisa é uma cidade inteira arrasada pelas águas, não há paralelo. Uma cidade é um sistema muito mais complexo, cuja responsabilidade pela saúde e segurança dos seus moradores é do poder público. Infelizmente a tendência é vermos mais catástrofes climáticas, causadas pela cobiça inerente ao próprio sistema capitalista. Doe o que puder à instituição ou projeto que mais se alinha aos seus valores para ajudar as vítimas e na reconstrução do estado.


Escrevo esta carta participando do Newsletteraço, um movimento organizado no grupo de Newsletters brasileiras para lançar novas newsletters ou movimentar aquelas que estão paradas. Você encontra neste link todas as newsletters que participam desta edição.


Recomendações por aí:

A cidade submersa & a cidade submersa – Vanessa Guedes
Os adolescentes gaúchos desabrigados estão curtindo as roupas de marca que recebem das doações. Eu entendo, eu faria a mesma coisa. Tem gente comentando que está se vestindo melhor do que antes. Eu dou risada, volto ao passado.

Short Term Thinking | Jay Mo
In regenerative agriculture, when farmers convert fields over to mixed use agroforestry, they design for the full canopy height first. Other species will then get interplanted between the trees of the final overstory. Which, let’s assume, is oak, which is slow growing. So in between the oaks you plant a shorter lifespan species like a nut tree. And between them, faster 30-year fruit trees, and below them all fruit bushes. Life cycles within life cycles. Everything between you and the oaks is ‘short-term’. Which is a nuanced relationship to time that far outstrips our current culture of quarterly reports and yearly planning by a long long way.

As baleias de Melville e Verne – Lis Vilas Boas
A pesca da baleia não apenas foi comum no litoral brasileiro como deixou suas marcas em nomes de cidades e praias. Armação dos Búzios, cidade do norte do Rio de Janeiro, Praia da Armação, Ponta do Arpoador, Praia dos Ossos… todos esses locais remetem às atividades baleeiras. Armação era o nome dado ao conjunto de prédios e petrechos usados na pesca: o engenho de azeite, onde o óleo era processado; a casa de administração; locais de armazenagem de alimentos e materiais; casas de moradia temporária durante a temporada; e a senzala.

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