Bem em frente ao galpão há um Ipê.
Plantado três anos atrás , ainda não é uma árvore frondosa, mas já cresce mais alta que eu, e começa abrir a copa tentativamente, como um adolescente cujas roupas são sempre grandes ou pequenas demais. Aos seus pés, subindo pelo tronco, rasteja a vinha que tenta sufocá-lo.
Antes, em minha infância, desenhos de ursos em icebergs solitários populam as propagandas. Vilões jogavam garrafas plásticas no lixo em vez de em tonéis de recicláveis. Demorei muito para entender que, para aquela garrafa existir, primeiro uma multinacional precisou inventar a ideia de colocar água dentro de um pedaço de plástico.
Aprendi tarde demais sobre colonização e sobre como descolonizar o pensamento. Ainda engatinho nesses conceitos, que mordem meus calcanhares. Peno no básico, na parte de entender que enquanto terra for só um ativo financeiro de baixa liquidez, o mundo tende à bancarrota. Só quando a gente olhar para a Terra como viva, uma mãe que garante a vida, a gente vai começar a enxergar o caminho.
A terra onde hoje labuto já foi abusada por monocultura de cana, milho e capim. Não tenho culpa, mas tenho a responsabilidade de tentar consertar.
“Artista” é aquele que enxerga os absurdos do mundo
A frase é de Glennon Doyle num papo sobre a relação entre arte e sofrimento no podcast We Can Do Hard Things. Não é que se precise sofrer para fazer arte, mas o artista é aquela figura que percebe a incoerência fundamental no nosso modo de vida. E enxergar as frestas mexe lá dentro, sabe.
Sei que não tenho Depressão de verdade, com D maiúsculo, a pisadeira com os pés no peito que te impede de levantar da cama pra tomar banho ou escovar os dentes.
Mas sou acometido, volta e meia, por sua prima, melancolia, a nuvem que tinge o mundo de cinza, te impede de ver as cores e cola uma fita adesiva na sua cara impedindo qualquer sorriso que não aquela máscara de simpatia que a gente usa quando na verdade não tá tudo bem não, mas bora, que a vida não espera.
Minha melancolia tem cheiro de ansiedade climática, de não acreditar que o futuro será melhor, pelo menos não no curto prazo, de sentir a responsabilidade de carregar o privilégio gerado pela destruição (nem todo homem branco, mas sempre um homem branco), a mania de navegar o mundo pedindo desculpa por existir.
Posso plantar um monte de árvores, mas continuo comprando refrigerante no fim de semana. Eu vivo a tentar diminuir o impacto no mundo, mas é como lavar o quintal com botas sujas de barro.
Será que meu estar no mundo, no fim das contas, é mais benéfico do que o meu não-estar?
Humanos como espécie-chave?
Espécies-chave são aquelas, como grandes mamíferos, predadores ou castores, que causam um grande impacto no ambiente, que se reverte em aumento da biodiversidade e resiliência ecológica.
Ano passado li uma pesquisa feita em vilarejos abandonados no leste europeu que verificou que a biodiversidade diminui quando humanos deixam uma área previamente habitada. Parte do problema é devido ao ataque de vinhas agressivas que sufocam o crescimento de árvores. Vinhas que eram controladas por cabras criadas por humanos . Que junto com as galinhas e outros animais aumentavam a fertilidade do solo. O estudo não estava concluído (e é difícil considerar escalas de tempo, vai saber se as vinhas não são só uma primeira etapa de reconquista do espaço pela Natureza?), mas a conclusão preliminar é de que humanos podem atuar como espécie-chave.
Em outras palavras: mais do que atuar na redução dos impactos, a presença de humanos pode contribuir ativamente para a criação de um ecossistema mais rico do que sem eles.
Kristine Tompkins é alguém que entende de espécies-chave. Antes CEO da Patagônia, ela lidera trabalhos de renaturalização de grandes áreas no Chile e Argentina, um trabalho que envolve, além do plantio em massa, a criação do primeiro centro de reprodução de onças do mundo. Se humanos são capazes de reintroduzir espécies-chave, isso não os tornaria também?
Último argumento: a Amazônia é, na verdade, um jardim plantado pelos povos que ali viveram nos últimos milênios.
Porém, existe uma armadilha na ideia de humanos como espécie-chave. Porque esse animal de telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor pode atuar tanto para o benefício quanto na destruição de biomas.
Se eu te disser “renaturalização” você provavelmente vai imaginar uma floresta, nós fomos aculturados a associar valores positivos a árvores e florestas, enquanto outras formações, como pântanos, charcos, brejos e cerrados podem ser menosprezadas.
Aqui em minha cidade havia um brejo dentro de uma propriedade particular que há décadas foi transformado em um lindo lago. O problema era que o brejo não só era mais rico, como muito mais efetivo na filtragem da água daquele córrego.
E plantar árvore também pode ser bem problemático, principalmente se você encher uma área com eucalipto plantado juntinho.
O que eu quero dizer é: como você garante que esse trabalho humano tem saldo positivo? Quais são os critérios? (Maior biodiversidade? Restauro ao bioma anterior? Quantos anos você vai voltar? Quinhentos anos? Mil?). Como sempre, essa conversa requer conhecimento e nuance.
Voltando: onde eu me encaixo nisso?
Não tenho a pretensão de fazer um trabalho de renaturalização no bosque que plantei aqui. As espécies escolhidas, distâncias entre elas e formato de plantio foram uma concessão para trazer benefícios ambientais, aumentar a biodiversidade por aqui com frutíferas e nativas. Mas também, benefícios estéticos e econômicos para o Espaço Kabouter. (Até porque sustentabilidade financeira ainda é um dos pilares do negócio).
Às vezes acho o trabalho bacana. Às vezes acho insuficiente, como jogar uma garrafa no cesto de reciclável, garrafa que nem deveria existir, pra começo de conversa.
Estragar menos ou deixar melhor?
Entender humanos como espécie-chave, com potencial positivo, é uma mudança no jeito de estar no mundo.
É a sutil, mas fundamental, diferença entre “tentar estragar menos” e “deixar melhor que antes”.
Nas palavras de Marshal Rosemberg, na frase popularizada por Elisama Santos: “Quero que ele conheça exatamente a coisa especial que ele é, senão não perceberá quando ela começar a ir embora. Quero que ele permaneça desperto e veja as possibilidades mais loucas. Quero que ele saiba que vale a pena fazer de tudo só para dar ao mundo um pequeno pontapé quando se tem a chance. E quero que ele saiba a razão sutil, fugidia e importante pela qual nasceu humano, não uma cadeira.”
E assim, a cada dois meses, mais ou menos, eu estou ali, carpindo em volta daquele Ipê, arrancando as vinhas que insistem em voltar, dizendo “vai, cresce, vai virar abrigo de passarinho e alimentar o entorno com suas flores”.

Aquelas flores talvez deixem o mundo um pouco menos cinza.
Cadeiras não são espécies-chave. Mas talvez humanos possam ser.