Vamos ser sinceros, brincar com uma criança é meio chato.
Que adulto tem paciência para sentar no chão e mover os bonequinhos pela casinha de lego, ou os carrinhos pelas pistas de Hot Wheels, por mais de quinze minutos?
Mas esse não é (só) um texto sobre parentalidade. É um argumento que venho mastigando: Brincar em paralelo faz falta demais aos adultos. Essa afirmação tem um nó, mas vamos por partes.
Entra aí. Bora lá?

Primeiro, definição: Brincadeira paralela é uma fase do desenvolvimento infantil, geralmente no fim dos dois anos de idade, na qual as crianças passam a brincar ao lado de outras, mas sem interação significativa. As crianças estão próximas, porém, cada uma em sua própria brincadeira.
Optei por flexionar para a forma ativa do verbo: o brincar, porque em adultos já existe a intenção, um movimento.
O lance do brincar em paralelo veio, primeiro, de um comentário da esposa sobre a vivência de aquarela para mulheres que ela organizou no Espaço Kabouter: “curioso é que elas não pediram muita instrução ou fizeram perguntas, o que elas queriam mesmo é cada uma experimentar e trabalhar em sua própria arte.”

No mesmo dia, recomendado pela newsletter do Austin Kleon, me aparece este artigo da artista Courtney Martin chamado “A Family that makes art together”, onde ela responde como intercala o fazer artístico na vida com as crianças (tradução minha):
A mesa da cozinha era o estúdio de arte. Não era super conveniente, mas era o que tínhamos para trabalhar. (…) Acho que o ponto é este: se você quer que seus filhos façam arte, você precisa fazer arte em volta dos seus filhos.
O objetivo de criar uma cultura familiar que cria arte é ajudar suas crianças a desenvolver o músculo para criar, não apenas consumir, e ver e amar o mundo, abrir o portal para o mistério sagrado da inspiração, e ver qual beleza emerge, arriscar e ver que às vezes funciona, às vezes não, e às vezes resolver problemas, desenvolver seu próprio senso estético, brincar e fazer, e dar a elas uma saída para suas emoções. Em um mundo cada vez mais consumista, algorítmico e artificial, criar uma cultura familiar do fazer, de nos surpreender, e de bagunçar, parece que salva vidas.
Ano passado, enquanto as crianças faziam a lição de casa na mesa da cozinha, eu me sentava com elas para desenhar a partir de uma apostila. Isso porque percebi que era muito mais fácil fazer esse convite do que mandá-las fazer tarefa e tentar trabalhar, o que gerava resistência, resmungos e um milhão de “papai me ajudaaaa, eu não consigoooo”.
As crianças não precisavam de ajuda com a lição. Elas só queriam companhia. Do mesmo modo, quando sento para brincar de lego com as crianças, eu não estou mexendo os bonequinhos, só estou ali, junto com elas, criando esculturas doidas ou veículos para cenários apocalípticos.

Na rotina deste ano, em que as crianças fazem a lição no contraturno escolar, até sinto falta desses momentos.
O que leva à velha questão do privilégio do tempo. Quem tem tempo de sentar uma hora à tarde para desenhar, criar, recortar e fazer arte com as crianças? Quantas vezes eu não queria estar ali fazendo colagens com elas em vez de descascar batatas e cozinhar feijão e lavar alface para a janta?
Contudo, acho que adultos perdem muitas oportunidades de brincar em paralelo. A carência existe, vide Bobbie Goods e outras modas de livros de colorir que vêm e vão.
Eu me pergunto por que não chamamos os amigos para uma tarde para fazer arte, criar zines, ou sei lá, brincar de massinha? É uma questão cultural, eu sei. Só que logo ali atrás, antes da invenção da família nuclear, as atividades eram mais coletivas, tricotava-se em grupo.
Se bem que o que é uma turma de cerâmica senão uma versão possível de adultos brincando de massinha?
Tem um nó nessa ideia toda que não consigo desatar: por que um grupo de adultos em volta de uma mesa, cada um em seu próprio celular nas suas próprias redes sociais, “não conta como brincar em paralelo?”
Ou conta?
Enquanto as crianças faziam lição de casa, eu sentar na mesa com o celular nas mãos tinha o mesmo efeito de não estar lá. “Me ajudaaaaaa.” O que não acontecia com outras atividades.
Talvez tenha a ver com a parte da “intenção”.
Talvez tenha a ver com a corporalidade, de como a nossa inteligência é corpórea.
O fazer traz isso à tona, nós movimentamos essa energia, essa atenção. É um estar junto no qual eu sinto meu corpo, e sinto a presença dos outros seres humanos ao meu redor.
Telas são incorpóreas.
Mas, sabe, não consigo chegar no ponto. Não sei por quê, mas é diferente estar com uma tela ou fazendo qualquer outra coisa.
Deve existir aí um espaço para o brincar em paralelo, um espaço para adultos criarem arte, zines, explorar técnicas artísticas, diferentes materiais, diferentes formas de expressão, todos sentados em volta de uma mesa, trabalhando, conversando, interagindo, um estar junto mais rico para todo mundo. Esposa inclusive quer trazer algo assim para o Espaço Kabouter em breve.
Mas eu preciso lembrar, da próxima vez que minhas crianças gritarem “que téeedio” quando eu mandar desligar a TV, em vez de mandar caçar o que fazer, pegar meu caderninho de desenho, sentar na mesa da cozinha e dizer “traz a caixa de lápis?”

Recomendações:
Navigating by aliveness – Oliver Burkeman
Aliveness. It goes by other names, too, none of which quite nail it – but it’s the one thing that, so long as you navigate by it, you’ll never go too far wrong. Sometimes it feels like a subtle electrical charge behind what’s happening, or a mildly heightened sense of clarity, or sometimes like nothing I can put into words at all.
Arte faminta – Lis Vilas Boas
Dentro de um escritor podem existir muitos lobos (ou peixes, ou corvos, ou insetos, ou até fungos), e o que dá as caras primeiro na escrita não necessariamente é o mais forte ou o favorito. Invariavelmente, o primeiro livro de um escritor que você lê não é o primeiro livro que ele escreveu, por vários motivos.
Surface Without Substance – thejaymo
With its smooth, depthless glass, the smartphone is the ultimate surface: no ridges, no contours, nothing to locate you. It denies the body its place in the interface. There is no entrance or window into the Semiosphere via a smartphone, only exposure to it.