Outro dia passei um domingo fazendo artesanato. Cola papelão, canetinha.
No dia anterior havia jogado Ludo, e se você já jogou qualquer coisa que envolva dados com crianças, sabe vai passar muito tempo caçando o dado no chão.
Sabe o que resolveria isso? Uma torre de dados! (Na verdade, qualquer tigela, mas eu sendo eu, vamos do jeito complicado). O primeiro impulso foi abrir o Mercado Livre no celular e procurar um modelo bonitinho, mas a impossibilidade de desembolsar duzentão falou mais alto. (Preciso apagar esse aplicativo antes que me leve à falência.)
A alternativa: procurar “torre de dados” no Youtube: minha filha e eu ficamos assistindo alguns DIY para inspirar, e logo no domingo cedo já saquei a caixa de leite e a tesoura. Eu não tinha exatamente um ponto de chegada, fui de passo em passo acrescentando detalhes. Por fim decidi fazer empapelamento para esconder a estampa da caixa, também porque daria uma textura interessante.
A ideia não era fazer conteúdo, nem mostrar para ninguém, era só ter uma torre para poder jogar com as crianças. Eu não esperava que fosse ficar bonitinha, geralmente esse tipo de projeto costuma ficar tosco.
Quando foi a última vez que você fez alguma coisa apenas por diversão?
Casey Neistat, um dos principais expoentes do “Vlog”, vídeos supostamente despretensiosos mostrando o dia-a-dia. Partindo de números já satisfatórios, viu sua audiência explodir no ano em que quando publicava um vídeo novo todos os dias.
O “supostamente” está em itálico, pois seus vídeos tinham uma fachada de despretensão good vibes, mas com imagem, edição e storytelling impressionantes para quem estava trabalhando sozinho.
O que mais me marcou da experiência, além dos lindos takes aéreos feitos com drone enquanto Casey deslizava com o skate elétrico pelas ruas de Nova Yorque, foi uma pequena fala em um dos vídeos mais para o final do projeto, algo como “chega um ponto que eu não sei mais se quero sair para passear de skate ou só faço porque vai ficar bom no vídeo”.
A gente vive a vida performando.
Nada mais cringe do que performar influencer para meia dúzia de pessoas… Ou não? Não é assim que você se convence e ao mundo, do seu valor? Não é assim que se joga o jogo?
Mas esse é um jogo que decidi jogar nos meus termos — Na primeira versão havia escrito “decidi não jogar”, mas estou aqui, fazendo malabarismo literário para você, não estou?
Em um vídeo publicado alguns anos mais tarde, depois que o projeto terminou, Casey Neistat publicou um vlog chamado “the truth why I quit“
“and then I had this other really romantic idea, that I read in some self help book or something. Rather than waiting for the end of your life, take years of your life throughout of your life to just enjoy the fruits of your labor.” (…) But the ambicion, the desire to do more, the desire to make something of yourself, is very hard to turn off.
*(Então eu tinha essa outra ideia romântica, que li em um livro de autoajuda ou coisa assim. Em vez de esperar o fim da sua vida, tire anos durante a sua vida para aproveitar os frutos do seu trabalho. (…) Mas a ambição, o desejo de fazer mais, o desejo de fazer algo de você, é muito difícil desligar.) *
Não vou entrar aqui numa discussão de privilégio (quem consegue tirar um ano de folga?), mas vou reduzir a questão: por que a gente, muitas vezes, passa o domingo “produzindo conteúdo”? Às vezes só tirando uma fotinha brincando com o cachorro, muitas vezes tirando 30 fotinhas brincando com o cachorro porque uma há de performar melhor para o algoritmo.
Existe no artista essa ânsia de performar, uma fome de palco. Como a gente equilibra isso com a nossa necessidade de sanidade? Quem quer ser um influencer?
Em um artigo que não consegui mais encontrar, Neil Gaiman conta do sábio conselho que recebeu de Alan Moore em um evento de comemoração do sucesso de Sandman: “você fez um ótimo trabalho. Você deveria desfrutar o momento.” Gaiman diz então que nunca conseguiu segui-lo, sempre em busca do próximo projeto.
Ser pai tem mudado minha vida de maneiras curiosas. Não tive aquela “revelação” quando as crianças eram pequenas, aliás, isso é assunto para outra carta, mas tive muita dificuldade para me conectar com as crianças quando eram bebês imersos em seus mundinhos. Mas hoje me vejo apenas curtindo o momento com eles, fazendo coisas apenas porque são divertidas naquele momento, só pra gente. Sem câmera, sem celular, sem registro.
Porque o presente é tudo o que as crianças têm. Elas não vivem na Internet. A mais velha até sabe da existência de Instagram, Youtube, enfim, e às vezes brinca de “influencer”, pegando o meu celular e fazendo vlogs apresentando seus bichos de pelúcia, que às vezes enviamos para amigos próximos. Eu poderia estar balançando a cabeça, dizendo “essa geração está perdida”, mas quando eu era pequeno costumava “gravar um podcast” num gravador de fita cassete dos meus pais. A gente também brincava de apresentadora de programa de auditório, e as disputas entre as meninas sobre quem seria a Xuxa eram capazes de criar ou desfazer amizades com força. (Se bem que é essa nossa geração que está aqui afundada em algoritmos, então talvez seja a nossa a geração perdida.)
A parede de minha cozinha é pintada com tinta-lousa, onde desenhos a giz rolam soltos. Ninguém aqui é particularmente talentoso, o que torna essa lousa um espaço democrático, temporário, de brincar de rabiscar. Não tem nenhuma webcam apontando para minha parede, e a maioria dos desenhos não ganha sequer uma fotinha de registro. Só alguns que ficam particularmente bons.
Existe um prazer em fazer um desenho numa lousa, sabendo que ele será apagado em pouco tempo. É como desenhar na areia da praia, um registro temporário que desaparecerá para sempre, seja ele o mais incrível ou horrível do mundo. Não importa, o que existe ali é o presente.
Serve pra lembrar que a gente mesmo não importa. Por que não aproveitar o que tem hoje?
Se acho relaxante a ideia de desenhos que serão apagados, por que sinto ansiedade em relação a “Stories”, mensagens publicadas que desaparecerão em 24 horas?
Talvez a diferença esteja em fazer “pra gente” e fazer “para uma audiência”. Stories têm um quê de vida útil artificial, quando o tempo disponível é artificialmente reduzido, aproveitando-se do FOMO (fear of missing out) para forçar o usuário a voltar e o produtor de conteúdo a publicar todos os dias, alimentando a máquina capitalista.
Outro dia, por sugestão das crianças, estávamos desenhando como seria um Monster Truck do Mickey. Nossos carros ficaram deliciosamente feios, nossos Mickeys tortos de muro de escola com rodas gigantes, que o mundo jamais verá.
Enfim, percebo que não são desenhos que faço apenas para mim, pelo prazer de fazer algo surgir de minhas mãos. Faço junto com minha família, com as crianças, com a esposa, volta e meia com algum amigo que me visita em casa. São momentos de pertencimento.
Às vezes imagino que, se morasse sozinho, eu viveria no Instagram.
Talvez, no fim de semana, tirar 30 fotos brincando com o cachorro para escolher a melhor para postar na rede social, seja uma forma de dizer “ei, eu pertenço”, nossa tentativa ultraconectada de acalentar o ancestral medo humano de ser rejeitado da tribo.
Contudo… Qual o efeito na nossa felicidade quando essa tentativa de pertencimento acontece nesse espaço ultracapitalista, mediado por algoritmos treinados para aumentar o tempo gasto no aplicativo, a qualquer custo? Que sabe que quanto maior o desamparo, maior a busca por vínculo, e mais tempo gasto ali dentro?
Talvez uma das soluções seja reencontrar o prazer de fazer pequeno, de desenhar para uma criança num guardanapo de restaurante, de cantar uma música desafinada ao cozinhar, de inventar uma rima besta só pra você, que nunca vai ser dita em voz alta. De desenhar numa lousa que é apagada todo dia. De riscar com um graveto na areia do parquinho.
Não é uma solução escalável. Talvez justamente por isso tão revolucionária.
Links de hoje:
A desumanização dos animais – Eliane Brum / Sumaúma
Não aguento mais consumir cultura – Eduf
Solarpunk: A Container for More Fertile Futures – Jay Springett
O Instagram e o fim da felicidade possível | Emanuel Aragão – Youtube
📷 Foto de Markus Spiske via Unsplash